"Mas isso já aconteceu antes..."

Por Aldo R. Fernandes Neto

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Imagens do satélite Sentinel 2 mostrando o antes e o depois em um local atingido pelas cheias de maio de 2024 no município de Canoas, RS.

Entre o final de abril e início de maio de 2024, um desastre meteorológico sem precedentes atingiu o estado do Rio Grande do Sul. 70% dos municípios registraram enchentes, e muitas pessoas morreram ou perderam suas casas. Nem mesmo o centro da capital Porto Alegre foi poupado do avanço das águas.

Em vista desses acontecimentos, a questão das mudanças climáticas voltou a ser amplamente falada e discutida na imprensa brasileira e nas redes sociais. Contudo, para muitas pessoas, o papel do aquecimento global, ou mesmo a influência humana para o fenômeno ainda não é um assunto muito bem esclarecido.

A seguir, eu analiso alguns dos argumentos mais comuns usados para questionar as constatações a respeitos da mudança do clima em nosso planeta, para então apresentar uma reflexão a respeito das “teses alternativas”, e da falta de sentido que existe em se tentar negar fatos que, no final das contas, afetam a todos nós.


Isso sempre aconteceu

Um dos apontamentos mais comuns, e bastante persuasivo, é o do que esses eventos extremos sempre aconteceram - "isso já aconteceu antes" - o que, obviamente, é verdade. De fato, vários desastres meteorológicos ocorreram ao longo da história da humanidade, indo desde de secas severas a tempestades devastadoras.

A questão é que, em um planeta mais quente, esses eventos se tornam mais frequentes. E nós tanto podemos saber a razão pela qual isso acontece, como podemos olhar os registros de tais eventos ao longo do tempo e estudar a ocorrência deles nos anos mais recentes, comparando com nossos modelos matemáticos.

Figura 1: Anomalias de precipitação sobre o RS. Note como anomalias positivas mais significativas se concentram a partir da década de 90. [Fonte: PRECIPITAÇÃO EM RIO GRANDE – RS, BRASIL (1913 – 2016): ANÁLISE DESCRITIVA E DA VARIABILIDADE, Tamires da Rosa Silva & Éder Leandro Bayer Maier]


A figura 1, por exemplo, mostra as anomalias de precipitação - que são desvios da média - sobre o estado do RS, em um intervalo de mais de 100 anos, que vai de 1913 à 2016. As cores azul e vermelha se referem às fases da oscilação decadal do pacífico (sigla PDO em inglês), um ciclo climático bem conhecido pelos climatologistas. É fácil notar como as maiores anomalias estão concentradas no período que se inicia a partir da década de 1990.

Assim, eventos que antigamente podiam ser visto como "isolados", ocorrendo apenas uma vez em décadas - como a enchente histórica que atingiu a cidade de Porto Alegre em 1941 - agora se tornam cada vez mais frequentes. Já em 2023, três eventos de chuvas intensas ocorreram no estado do RS nos meses de junho, setembro e novembro, deixando juntos dezenas de vítimas fatais.

Enchente de 1941 em Porto Alegre, RS. [Extraída de https://metsul.com/grande-enchente-de-2024-e-os-ecos-do-desastre-de-1941/


Na verdade, 2023 foi um ano com vários eventos extremos registrados tanto no Brasil como no resto do mundo. E foi também o ano com a maior temperatura média global já registrado na história da nossa civilização até aquele momento.

É um fato bem conhecido da Física que uma atmosfera mais quente pode armazenar mais vapor d'água. A relação de Clausius-Clapeyron, conhecida desde o século XIX, estabelece que a concentração de vapor necessária para saturar o ar cresce com a temperatura. Quando a umidade do ar atinge a saturação, dizemos que ela está em 100%.

A partir daí, começam a se formar gotículas de água. E é assim que as nuvens se formam… Colocando de forma bem simples, em um mundo mais quente, tem mais água na atmosfera para gerar chuvas, ainda que, por outro lado, essa mesma atmosfera precise de mais vapor para ficar totalmente carregada.

Em conformidade com esses fatos, os modelos mostram uma tendência de aumento de dias secos - quando muita água evapora no calor, sem formar nuvens - mas também um aumento da chamada “precipitação diária”, ou seja, o volume total de chuvas que cai ao longo de um único dia.

Naturalmente, sendo o clima da Terra um sistema de extrema complexidade, essas tendências não são homogêneas. Em alguns lugares, a tendência maior deve ser de aumentar os dias secos, enquanto em outros, será o aumento na intensidade das chuvas. Já em outros, as duas coisas podem acontecer. [Veja a figura 2.]


Figura 2: Aumento de extremos de precipitação para cada $^{o}$C de temperatura. Trata-se de uma média entre 15 modelos (as áreas pontilhadas são aquelas para as quais os modelos concordam). [Fonte: Fischer et al 2014]

Tudo isso pode ser medido, índices pluviométricos, sequências de dias secos, e até mesmo as ondas de calor, as quais não são apenas períodos onde a imprensa diz que está fazendo muito sol. Talvez muitas pessoas não saibam, mas existe uma definição técnica para esse termo: três dias ou mais com temperaturas pelo menos $5^{o}$C acima da média para a época do ano. (Para as ondas de frio, são $5^{o}$C abaixo).

Ou seja, temos critérios para medir todos esses fenômenos, de forma que podemos quantificar de forma bastante objetiva todas essas mudanças que vemos acontecer no nosso planeta. Isso é importante para rebater outro tipo de questionamento: seria o aumento dessas tragédias uma consequência do aumento da população?

Vemos que, por mais que a população de fato tenha aumentado, e que mais pessoas tenham se estabelecido em áreas de risco - e que sim, isso contribui para que haja mais vítimas nessas situações -  é fato inequívoco que eventos extremos estão ocorrendo com cada vez mais frequência.


Não é nossa culpa

Outro questionamento muito comum é a respeito da influência das atividades humanas sobre o clima, mais especificamente, com a liberação de gases estufas, como o dióxido de carbono (CO2), o metano e o óxido nitroso. Não poderia haver explicações alternativas para esse aumento na temperatura média do nosso planeta?

Vamos lá, o fato é que gases como o CO2 podem sim absorver radiação térmica, contribuindo para o aquecimento da atmosfera. Isso não é algo meramente hipotético, pode ser medido com instrumentos. Sabemos que essas moléculas vibram em ressonância com ondas eletromagnéticas com comprimento na faixa do infravermelho, como aquelas que a superfície aquecida da Terra emite, bloqueando parte da irradiação de calor para o espaço.


Figura 3: O espectro de emissão térmica da Terra é afetado pelos diversos gases presentes na atmosfera. [Fonte: giss.nasa.com]

A figura 3 mostra o espectro de emissão de radiação térmica da Terra - um gráfico da intensidade em função do comprimento de onda - tal como medido por satélites no espaço. A linha vermelha mostra qual deveria ser o formato aproximado dessa curva caso não existisse atmosfera. Na figura, é possível ver nitidamente o bloqueio devido à presença do CO2, bem como à de outros gases. A área azul representa a quantidade de radiação que de fato escapa para o espaço.

O aumento da temperatura média do planeta também pode ser observado ao longo dos nossos registros meteorológicos, e esse aumento acompanha de forma consistente o aumento da concentração de CO2. Mas aí pode surgir outra pergunta: seria mesmo esse aumento na concentração causado por seres humanos?

Em geral, o carbono de origem fóssil tem uma propriedade bem conhecida: ele é mais pobre em carbono-13, um dos três isótopos de carbono que existem na natureza - os outros dois são o carbono-12, mais abundante, e o carbono-14 - assim, observando a variação na proporção desse isótopo, podemos ver que, de fato, carbono de origem fóssil está sendo liberado na atmosfera.


Figura 4: Variação na concentração de CO2 na atmosfera da Terra (em preto) e a variação negativa da proporção de carbono-13 (em vermelho) entre 1981 e 2014. [Fonte: Observatório de Mauna Loa, Havaí]


A figura 4 mostra, em vermelho, a variação negativa da proporção de carbono-13 para carbono-12 na atmosfera, no período de 1981 até 2014, tal como medida pelo Observatório de Mauna Loa, no Havaí. Comparando com o aumento geral da concentração de CO2 na atmosfera, em preto, vemos que as duas curvas concordam entre si de forma quase perfeita.

Vulcões também são frequentemente apontados como a causa, mas a atividade vulcânica é intensamente monitorada, e a liberação de CO2 por eles é de apenas 1% comparadas com as emissões humanas. Aliás, variações na concentração do gás oxigênio (O2) observadas ao longo dos anos, juntamente com as variações de CO2, são consistentes com a participação desses gases em processos de combustão.


Figura 5: Concentração de CO2 comparadas com as concentrações O2 medidas entre 1989 e 2005. [Fonte: IPCC AR4 WG1 2.3.1 adaptado de Keeling et al. 2006]

A figura 5 mostra a variação na concentração de O2 no período que vai de 1989 até 2005, de acordo com o $4^{o}$ relatório do IPCC (adaptada a partir do trabalho de Keeling e colaboradores, 2006) comparada com a variação de CO2. A tendência de aumento na concentração do gás estufa é acompanhada pelo decréscimo de O2 (relativamente pequeno, ninguém vai ficar sufocado por causa disso...). As oscilações são devidas à atividade biológica que varia ao longo do ano.

Ou seja, praticamente não resta dúvidas de que seres humanos estão alterando as concentrações de CO2 (e outros gases estufa) na atmosfera da Terra, e, portanto, causando a rápida mudança climática que estamos presenciando.

E existem ainda outros meios, além da queima de combustíveis fósseis, pelos quais a composição da atmosfera pode ser afetada. No Brasil, onde cerca de 90% da energia utilizada vem de fontes renováveis, sendo a principal contribuição para as emissões devidas a mudanças no uso da terra - basicamente, isso significa desmatamento - o carbono, originalmente armazenado na biomassa, é liberado pela combustão nas queimadas ou na decomposição da matéria orgânica morta.

Figura 6

Os modelos climáticos atuais consideram todo o tipo de influência. São levados em conta, inclusive, fatores naturais, como a atividade solar, os ciclos orbitais e os vulcões. Porém, a única maneira de se reproduzir o cenário que observamos no mundo real é considerando as emissões de gases estufa por atividades humanas, com as suas várias fontes de origem. (Sem elas, na verdade, o planeta deveria estar em processo de lento resfriamento.) [Veja a figura 6].


Teorias de conspiração

Finalmente, é comum que muitas pessoas - sobretudo aquelas com motivações ideológicas - recorram a teorias de conspiração para colocar em dúvida a verdadeira natureza da crise climática pela qual estamos passando. Segundo essas pessoas, o aquecimento global seria apenas uma narrativa para defender interesses obscuros.

Seria - quem sabe? - uma forma de países ricos sabotarem o desenvolvimento dos mais pobres, impondo limitações à exploração de recursos naturais. Ou mesmo uma forma de justificar o aumento da regulação ambiental, tornando as pessoas mais submissas a um “estado interventor”.

Mas o fato é que, antes de se discutir qualquer uma dessas narrativas conspiratórias, essas pessoas deveriam se debruçar sobre os dados apresentados pela ciência. Primeiro elas deveriam mostrar que toda a fundamentação por trás das preocupações que temos sobre as mudanças climáticas está errada.

Mas obviamente isso não seria possível. Como podemos ver, a ciência do clima está muito bem estabelecida, e existem razões mais do que suficientes para estarmos preocupados com o futuro. Seria como ignorar um médico especialista que, diante de uma série de exames bem detalhados, diz que você está com um problema sério de saúde, para abraçar uma narrativa segundo a qual esse médico está mentindo por alguma razão obscura qualquer.

Ou ainda, diante da insatisfação com o diagnóstico, você procura outros médicos, e todos dizem a mesma coisa: você precisa urgentemente se tratar. Até que, após consultar uns cinquenta profissionais, aparece um dizendo que está tudo bem com a sua saúde, e que você, portanto, não precisa de tratamento algum. Você então vai para sua casa e fica lá torcendo para ele estar certo... Quem em sã consciência faria algo assim?

Porém, observando o desenrolar dos fatos dias após o início do sofrimento das pessoas no Sul do Brasil, acabei inevitavelmente me deparando com "teses alternativas" sendo difundidas para negar a relação do ocorrido com o aquecimento global. Quando vejo o crescimento de uma onda de negacionismo diante de uma crise humanitária de grandes proporções, o que vem à minha mente é: "Mas isso já aconteceu antes... foi na pandemia de COVID-19!"

Longe de mim querer apontar algo positivo diante desses acontecimentos. Deixo aqui minha solidariedade à todas as pessoas que perderem parentes, amigos, animais e seus lares. Mas é fato que, para muita gente, essa tragédia contribuiu para dar materialidade à questão climática e à problemática da nossa relação com o meio ambiente.

Para além da tristeza com as vidas e os lares que se perderam, podemos olhar para o fato de o estado do RS ser responsável por grande parte dos insumos agrícolas que abastecem o país, tal como o arroz, um dos principais componentes do prato dos brasileiros. Eventos como esse, assim como as secas que acompanham ondas de calor em outros estados, vão impactar diretamente a disponibilidade e o preço desses produtos, afetando consideravelmente a vida da população.

Um discurso que antes parecia distante, propagando por pessoas tidas apenas como meras sonhadoras "amantes da natureza", agora passa a ser visto como relevante para o planejamento do nosso futuro por uma parcela mais abrangente do público (ao menos, assim eu espero). O clima e a sustentabilidade precisam ser urgentemente incorporados às nossas perspectivas econômicos e sociais. Devemos sempre cobrar aqueles que ocupam os espaços de poder.

E claro, ao invés de questionar a realidade da crise climática, devemos antes questionar aqueles que a negam, tanto para o nosso bem quanto para o daqueles que herdarão o mundo que será deixado por nós.


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