A profundidade das perguntas simples

Por Aldo R. Fernandes Neto

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Figura 1: O céu noturno em Vermont (Fonte: Wikimedia Commons)

A Escuridão do Céu Noturno

Por que o céu noturno é escuro? Por que tudo o que conseguimos ver além das estrelas que aparecem à noite é um fundo negro (como na Figura 1)? Pode parecer uma pergunta simples, mas a busca por uma resposta satisfatória acabou por nos levar a conclusões surpreendentes.

Este mero detalhe com o qual todos nós estamos acostumados, sem maiores questionamentos, parece não fazer sentido quando consideramos algumas suposições: vamos partir do princípio de que o universo é infinito e totalmente preenchido por estrelas (eu sei, não há nenhuma razão a priori para afirmar essas coisas, mas vamos considerar assim por agora, e depois exploramos as alternativas).

Se for este o caso, para qualquer direção que olharmos, nossa linha de visão sempre iria terminar na superfície de uma estrela, ou seja, o céu deveria ter o brilho de uma estrela!  Mais especificamente, o "brilho médio" de uma estrela, já que está é uma propriedade que varia entre elas.

Uma pessoa mais atenta pode se questionar se o brilho das estrelas mais distantes não seria mais fraco, como o que ocorre com os faróis de um carro avistado de longe, de forma a tornar-se imperceptível para distâncias muito grandes. De fato, sabemos que a intensidade de uma fonte luminosa cai com o inverso do quadrado da distância.

Porém, lembre-se que estamos supondo que o universo é todo preenchido por estrelas, logo, a densidade de estrelas em um dado pedaço do céu aumentaria com o quadrado da distância, pois estaríamos olhando pra uma sucessão de superfícies esféricas centradas na Terra, o que compensaria a diminuição do brilho (isso pode ser demonstrado com o devido rigor matemático). É uma questão de perspectiva, veríamos algumas poucas estrelas próximas, mas a quantidade aumentaria indefinidamente focando mais ao longe. Logo, a questão persiste.

Bom, então talvez o Universo não seja infinito, ou ele é, mas a presença de estrelas está restrita à uma região bem definida, havendo apenas espaço vazio para além dela. Aparentemente isso resolve o problema, talvez possamos encerrar o assunto por aqui.

Mas aí nos deparamos com um fato no mínimo "suspeito". A quantidade de estrelas parece ser mais ou menos a mesma em todas as direções do céu, exceto na faixa de estrelas da Via Láctea, a galáxia onde vivemos. E ainda assim, sabemos que existem outras galáxias além da nossa, e a densidade delas parece ser a mesma em todas as direções. Logo, se esta é a resposta definitiva para nossa pergunta, estamos aparentemente bem no centro desse Universo!

Será que ocupamos mesmo esta posição "especial"? A princípio, não há nenhuma razão para pensarmos assim. Esse é o tipo de questionamento que foi formulado pelo astrônomo Heinrich Wilhelm Olbers em 1826, recebendo então o nome de "Paradoxo de Olbers".

E o próprio Olbers tentou encontrar uma resposta. Ele imaginou que poderia haver alguma matéria interestelar bloqueando a luz das estrelas mais distantes, como uma espécie de nevoeiro cósmico. Porém, essa hipótese entrava em conflito com a termodinâmica, uma vez que, dado um tempo suficientemente longo, essa matéria deveria entrar em equilíbrio térmico com as estrelas, brilhando tanto quanto elas.

Aí existe uma outra suposição implícita, a de que o universo seria infinito não apenas no espaço, mas também no tempo, ou seja, nunca teve um início, de forma que a luz, que tem uma velocidade conhecida, teria tempo o suficiente para viajar das estrelas mais distantes até nós. Mas antes de verificarmos até que ponto esta ideia faz - ou não - sentido, vamos fazer uma outra pergunta simples.

Velocidade Relativa

Então vamos lá. Você está em um carro a 60km/h, o qual, em um dado momento, é ultrapassado por um apressado, a 120km/h. Qual é a velocidade com a qual você vê esse outro carro? Qual a velocidade relativa entre o outro veículo e o seu?

Acredito que a resposta seja intuitiva para muita gente: basta subtrair a sua velocidade daquela do sujeito apressado, resultando em 60km/h.

Vamos acrescentar mais um detalhe ao nosso exercício de imaginação. Suponha que no exato momento em que ocorra a ultrapassagem, você passe bem em frente a um poste. Naturalmente, você veria o poste se movendo a 60km/h, só que para trás.

Note ainda que, em relação ao poste, você está a 60km/h, enquanto o outro carro está a 120km/h, contudo, para o outro motorista, você está a 60km/h para trás, enquanto o poste está a 120km/h para trás. Enquanto isso, para você, tanto o poste quanto o outro veículo se afastam a 60km/h em sentidos opostos.

Vamos pensar numa situação um pouco mais complexa. Uma corrida, na qual vários carros partem da largada, cada um com uma velocidade constante diferente, em uma longa pista totalmente reta. Vamos desprezar o momento da aceleração para simplificar, ou seja, no instante em que é dada a largada, todos eles atingem imediatamente suas respectivas velocidades  finais.

Figura 2: Vários carros partem da linha de largada com diferentes velocidades.

E existem carros de todo o tipo nessa disputa - é tipo uma corrida maluca - tem os lanternas, à 20, 40km/h, tem os mais ou menos, a uns 60, 80km/h, e tem os apressados, a uns 100, 120km/h, você pode imaginar também os mais competitivos, na faixa dos 200 a 300km/h. Uma bela ilustração feita por mim mesmo pode ser contemplada na Figura 2.

O interessante aqui é que, tendo todos os participantes partido do mesmo lugar ao mesmo tempo, eles verão uns aos outro afastando-se cada vez mais, de forma que um ocupante de um determinado veículo verá os que estiverem mais rápido indo para frente, e os mais lentos para trás. E, a cada instante, as distâncias serão sempre proporcionais às velocidades relativas. Ou seja, aquele que tiver o dobro da velocidade relativa em comparação com algum outro estará sempre no dobro da distância deste outro.

Quem possui familiaridade com os conceitos básicos de cinemática poderá facilmente demonstrar este fato, partindo da definição de "velocidade": distância percorrida dividida pelo intervalo de tempo em que o movimento ocorre. Mais especificamente, "velocidade" é um conceito vetorial, que se estende às três dimensões do espaço, sendo que, mesmo em uma situação mais geral, em que coisas se movam em todas as direções, partindo de um mesmo ponto, o raciocínio continua válido: as distâncias serão sempre proporcionais às velocidades relativas.

O exemplo da corrida seria apenas uma imagem mais simples pela qual nós podemos começar a exercitar a nossa imaginação, uma atitude bastante comum no processo científico, para então alçar a caminhos mais complexos. Por exemplo, nós poderíamos demonstrar que a constante de proporcionalidade em um dado instante é exatamente o inverso do tempo decorrido desde o início da corrida.

Mas por que eu estou falando dessa corrida maluca afinal? Por incrível que pareça, esta imagem nos ajudará a entender como podemos resolver o Paradoxo de Olbers, apresentado na seção anterior. Mas, para isso, vamos substituir nossos carros por galáxias!

Big Bang!

Quando observamos o espectro luminoso de outras galáxias no universo, ou seja, a intensidade da luz emitida por elas em cada frequência, notamos que elas são todas feitas basicamente dos mesmos elementos químicos. Contudo, apesar de haver um perfil característico para esses espectros, eles apresentam certos desvios de uma galáxia para outra.

Um desvio na direção da cor vermelha indica um alargamento dos comprimentos de onda da luz oriunda dessas galáxias, o que significa que elas estão se afastando do nós. Já um desvio na direção da cor azul indica um encurtamento dos comprimentos de onda, o que significa que elas estão se aproximando. É o chamado efeito Doppler, o mesmo que percebemos nas ondas sonoras, quando alguma coisa bem barulhenta, como um veículo com sirene ou um carro de som passa nas proximidades, o som ao se aproximar é diferente do som ao se afastar. A diferença aqui é que estamos observando este fenômeno com a luz. Esse desvio para o vermelho nos permite determinar a velocidade com que uma galáxia se distancia ou se aproxima de nós.

Mas, além disso, em alguns casos podemos também calcular sua distância. Foi em 1908 que a astrônoma Henrietta Swan Leavitt publicou seu trabalho sobre estrelas de brilho variável - chamdas de "cefeidas" - nas Nuvens de Magalhães (duas pequenas galáxias satélites da nossa Via Láctea), notando que havia uma relação entre intensidade média e período de variação do brilho. Essa relação foi confirmada em 1912, após a aquisição de mais dados sobre essas estrelas.

Assim, podemos dizer que as estrelas variáveis cefeidas são o que chamamos de "vela padrão", ou seja, comparando a intensidade com a qual enxergamos essas estrelas com a intensidade intrínseca, podemos saber o quão distante ela está através da lei do inverso do quadrado da distância.

Figura 3: O diagrama de Hubble mostrando a velocidade de afastamento vs a distância para as galáxias observadas (autor: Brews Ohare).

Em 1929, o astrônomo Edwin Hubble concluiu seu trabalho com a observação de 46 cefeidas em diferentes galáxias. Além das distâncias, ele também mediu as velocidades de afastamento através dos desvios para o vermelho. Ele notou que havia uma correlação estatística entre estas duas características, de forma que as galáxias mais distantes tinham uma tendência para se afastar mais rapidamente do que aquelas que se encontravam mais próximas, como mostrado na Figura 3.

A reta que melhor se ajusta aos dados observados define a chamada "Lei de Hubble", a qual afirma que, sobreposto aos seus movimentos "locais", as galáxias possuem um movimento de afastamento, cuja velocidade é proporcional à distância em que se encontram, ou seja, quanto mais distante a galáxias estiver, maior será essa velocidade.

Mas isso é exatamente o que ocorre na corrida maluca da qual eu havia falado! Naturalmente, estamos lidando com uma escala de tamanho e tempo bem diferente. O tempo de existência de nossa civilização é apenas um breve "instante" nessa corrida cósmica, de forma que o inverso da "Constante de Hubble" - que é relação de proporcionalidade entre a velocidade e a distância das galáxias - nos permite estimar um tempo no passado na qual toda a matéria do Universo que podemos observar estava contida em um mesmo ponto - a linha de largada do Cosmos - e esse tempo seria de aproximadamente 14 bilhões de anos!

Figura 4: O campo profundo do Hubble. Cada uma dessas manchas é uma galáxia com centenas de bilhões de estrelas cada uma. A imagem corresponde a um pedaço do céu correspondente a um décimo do diâmetro da lua (fonte: eso.org).

O famoso telescópio orbital lançado em 1990 foi batizado em homenagem a Edwin Hubble. Na Figura 4, podemos contemplar a imagem do campo profundo do Hubble, onde, em uma pequena região do céu, correspondente a um décimo do diâmetro da Lua, vemos várias galáxias, cada uma com centenas de bilhões de estrelas!

A possibilidade de um Universo em expansão já havia sido levantada pelo físico Alexander Friedmann em 1922, o qual derivou as equações que descrevem a evolução do Universo a partir das equações da Teoria Geral de Relatividade de Einstein. Já em 1927, o padre católico, matemático e astrônomo Georges Lamaître propôs a ideia de que todo o universo havia se expandido a partir de um "átomo primordial".

Em 1949, o astrônomo Fred Hoyle cunhou o termo "Big Bang" (algo como "grande explosão") para se referir a esses modelos de Universo em expansão. Ele estava, nessa ocasião, assumindo um tom crítico em relação a essas ideias. Mais tarde ele desempenhou um papel importante na compreensão dos processos de formação dos elementos químicos.

Na verdade, os cosmólogos não vêem o Big Bang como uma explosão de fato. Uma explosão consiste em uma certa quantidade de matéria e energia sendo repentinamente espalhada por um espaço previamente disponível. Contudo, o modelo do Big Bang parte do princípio de que foi o próprio espaço que começou a se expandir, carregando toda a matéria e a energia contida nele.

Pode parecer estranho, mas vem do fato de que, pela Teoria Geral da Relatividade, a matéria, a energia, o espaço e o tempo estão todos conectados, de forma que o comportamento de um desses quatro elementos cósmicos afeta o dos demais. Este fato também é essencial para entendermos a resposta para a pergunta que fizemos lá no início: por que o céu noturno é escuro?

Agora está claro que o Universo não é infinitamente velho. A Lei de Hubble estabelece um horizonte cósmico para a nossa visão. Quando olhamos para o céu, devido ao fato de a luz levar um certo tempo para viajar dos objetos que observamos até nossos olhos, estamos olhando para o passado. Assim, enxergamos as galáxias mais próximas como elas eram há milhões de anos atrás, e as mais distantes como há bilhões de anos atrás.

Logo, podemos supor que, ainda que o Universo seja infinito, ou mesmo finto mas com uma extensão muito além do nosso "horizonte cósmico", existem galáxias tão distantes que, pela Lei de Hubble, se afastam a uma velocidade maior do que a da luz, assim, a luz que sai delas nunca irá chegar até nós. Igualmente, a luz que sai daqui jamais irá alcançá-las. Para além deste horizonte, tudo o que há para nós é um fundo escuro.

Se você é uma pessoa devidamente antenada, pode achar estranho que algo se afaste de nós a velocidades maiores que a da luz, uma vez que isso violaria a Relatividade. Contudo, lembre-se que é o próprio espaço que está se expandindo, e, embora haja de fato um limite para as velocidades locais dos objetos, não há limites na Teoria da Relatividade para a taxa na qual o espaço pode se expandir. Assim, ainda que essas galáxias, localmente, se movam em velocidades menores que a da luz, elas são carregadas pela expansão cósmica.

Também é preciso ressaltar aqui que a imagem da corrida maluca apresentada anteriormente não representa exatamente a visão que temos do Universo. Lá existe o que podemos chamar de "referencial privilegiado", que seria a pista de corrida, em relação ao qual todas as velocidades são medidas. No nosso Universo não existe tal coisa, seria como se cada motorista ignorasse a pista e considerasse seu veículo parado, enquanto os demais se movem para frente ou para trás.

Naturalmente, todo esse esforço que nos levou ao entendimento das origens e da evolução do cosmos não foram realizados apenas para se responder à pergunta sobre a escuridão do céu noturno, esta foi apenas uma que se somou a várias outras, contribuindo para a construção desse conhecimento. Por outro lado, uma mente curiosa que hoje se interesse em responder essa nossa pergunta inicial, e que tenha acesso ao conhecimento disponível, certamente acabará por trilhar todos este caminho até o Big Bang, na busca pela resposta.

A minha proposta aqui é mostrar como as coisas acontecem na ciência. Às vezes algumas perguntas simples têm respostas bem complexas, e então, na busca por sanar essas dúvidas, acabamos encontrando as respostas para outras perguntas as quais, de outro modo, nem saberíamos como formular. É por isso que nunca devemos parar de fazer perguntas, como buscarei explicar melhor a seguir.

Jornada Sem Fim

O entendimento do que realmente estamos vendo quando olhamos para o céu de uma noite escura vai muito além do que foi exposto até aqui. Uma vez que, quanto mais longe olhamos no espaço, mais longe olhamos no passado, a parte mais profunda da imagem que chega até nós remete ao tempo em que nosso universo era tão denso que a luz não conseguia se propagar através dele. Também não existiam estrelas nessa época.

Contudo, ainda podemos captar a radiação que irrompeu pelo universo tão logo ele veio a se tornar "transparente". Trata-se de uma radiação térmica , cujo espectro se concentra na faixa das microondas, correspondendo a uma temperatura de cerca de 2,7K (ou cerca de 270oC negativos). A existência dessa "Radiação Cósmica de Fundo", foi prevista teoricamente por Alpher, Herman e Gamow por volta de 1950, e detectada pela primeira vez por Penzias e Wilson em 1964, constituindo uma forte evidência em favor do modelo do Big Bang.

Além disso, note que o trabalho de Hubble foi limitado pela capacidade de se identificar estrelas cefeidas nas galáxias observadas. Para galáxias muito distantes, torna-se bastante difícil identificar o brilho de uma única estrela, de forma que, caso quiséssemos investigar desvios na Lei de Hubble, precisaríamos de um outro método para medir sua distância.

Felizmente, existe um outro tipo de vela padrão que podemos usar: as supernovas do tipo 1A. Esses eventos explosivos ocorrem quando certos sistemas de estrelas binárias entram em colapso, possuindo uma energia, e portanto uma luminosidade, muito bem definida, e podem ser detectados a grandes distâncias. Assim, podemos aumentar o alcance do gráfico velocidade x distância das galáxias, e descobrir o que acontece com a Lei de Hubble.

Medições como esta foram feitas por vários grupos de pesquisadores em tempos recentes, com destaque para o trabalho de Riess e seus colaboradores, realizado em 1998. As observações mostram que a Constante de Hubble era menor no passado, o que significa que nosso universo está em uma expansão acelerada. Este resultado surpreendeu aqueles que acreditavam que a expansão deveria estar desacelerando devido à atração gravitacional entre as galáxias.

E é claro que não termina aí. Obviamente, há muitos detalhes que não mencionei aqui, e quem estiver mais interessado vai ter que buscar outras fontes caso queira ir mais a fundo. Não há dúvidas de que existe muito mais a ser descoberto, a nossa jornada em busca de conhecimento sobre o universo em que vivemos não tem fim.

Então, para concluir: nunca pare de questionar! Por mais bobos que seus questionamentos possam parecer, por trás de uma simples pergunta, dessas do tipo que só as crianças costumam fazer, pode se esconder todo um mundo de mistério e fascinação.

Referências

Grande parte das informações contidas neste texto foram retiradas do livro "Introduction to Cosmology" de Barbara Ryden.

Outra referência interessante para o leitor que quer ir mais a fundo é https://www.feynmanlectures.caltech.edu/, onde o volume I aborda temas como o tempo, distância, movimento e o efeito Doppler na Luz.

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