O que é (e o que não é) “Física Quântica”? PARTE 1

Por Aldo R. Fernandes Nt.

Twitter: @AldoRFernandes
Instagram: Aldo R Fernandes Nt



Introdução

    O termo “Física Quântica” está, sem sombra de dúvidas, entre os que mais despertam o fascínio e a curiosidade do público em geral, composto por pessoas que não lidam diretamente com a atividade científica. Eu diria que essa “fama” é muito bem justificada, uma vez que a Física Quântica, ou “Mecânica Quântica”, que é o termo mais formal, é talvez a mais bem sucedida teoria científica que temos até o momento. A compreensão de como a matéria se comporta em sua escala mais fundamental, dos átomos e das partículas que o compõem, nos permitiu entender uma vasta gama de fenômenos, reações químicas, propriedades da matéria, radioatividade, processos astrofísicos etc... com praticamente todas as suas previsões sendo confirmadas com um enorme nível de precisão.

    Por outro lado, a Mecânica Quântica se mostra altamente contraintuitiva no que diz respeito aos conceitos que utilizamos para descrever o mundo a nossa volta. Como pode algo real comportar-se como partícula e onda ao mesmo tempo? Como pode ser impossível conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de alguma coisa? Esses fatos intrigantes, que passaram a ser percebidos a partir do início de Séc. XX, logo começaram a mexer com a curiosidade e a imaginação das pessoas, e não poderia ser diferente! Contudo, traduzir a linguagem científica para o público geral quase nunca é uma tarefa fácil.

    Certa vez fiz uma pesquisa no YouTube, escrevendo “Física Quântica” na barra de busca. Entre os resultados, havia vídeos com títulos como “Deus x Física Quântica”, “O Poder do Pensamento (Física Quântica)”, “O Poder Quântico do Pensamento na Manifestação da Realidade” e “O seu Pensamento Cria a sua Realidade”. Em seguida, escrevi “Mecânica Quântica”, que remete à uma linguagem mais acadêmica, então encontrei alguns bons documentários sobre o tema, mas ainda assim, havia um título curioso: “A Física Quântica Prova que seu Pensamento Cria a Realidade”; usando o termo mais vulgar (claramente, um ajuste do mecanismo de busca).

    Será mesmo que a Mecânica Quântica descortinou toda uma realidade na qual nosso pensamento cria sua própria realidade, confirmando o poder do pensamento positivo e todas as outras fantásticas alegações proclamadas pelos “místicos quânticos”? Bem, a resposta curta é: NÃO. Porém, tudo fica mais legal quando buscamos conhecer as coisas mais a fundo. Assim, vou procurar explicar, a seguir, o que é, afinal, a Mecânica Quântica, no intuito de ajudar aos meus leitores e leitoras a entenderem o que ela não é...


Figura 1: Como a Física descreve nosso Universo.

    Primeiramente, vamos buscar compreender onde a Mecânica Quântica se encaixa no conhecimento que nós temos hoje sobre o Universo. A Figura 1 representa as teorias da Física que melhor descrevem os fenômenos observados, dependendo da escala de tamanho e das quantidades de energia envolvidas (aqui devo alertar que trata-se de um esquema bem simplificado). Para o o mundo macroscópico em que vivemos, onde as as coisas costumam se mover em velocidades pequenas comparadas à velocidade da luz (baixas energias), temos a boa e velha Mecânica Clássica, ou Mecânica Newtoniana, desenvolvida por Isaac Newton no Séc. XVII.

    No início do Séc XX, Einstein desenvolve a sua Teoria Especial da Relatividade (ou “Relatividade Restrita”), descrevendo o que ocorre com objetos que se movem à velocidades comparáveis à da luz. Quase que simultaneamente (e com a contribuição do próprio Einstein, como veremos adiante), surge a Mecânica Quântica em seus primórdios, preocupada em descrever fenômenos observados na escala atômica, o mundo do muito pequeno.

    É necessário ressaltar aqui que a Mecânica de Newton não foi considerada “errada” ou “jogada fora” por essas novas teorias, como podemos ouvir dizer por aí. Ela é simplesmente incompleta, no sentido de que trata-se de uma aproximação de como a Natureza realmente funciona, assim como todas as teorias da Física - nenhuma delas é tida como uma descrição definitiva das coisas - sendo apenas aproximações. No limite de baixas velocidades, a Relatividade produz resultados praticamente idênticos à Mecânica Clássica, assim como a Teoria Quântica, quando extrapolada para escalas de tamanho maiores.

    Em 1915, dez anos após publicar sua Teoria Especial da Relatividade, Einstein apresenta a Teoria Geral da Relatividade, importante em escalas de energia ainda maiores, onde os campos gravitacionais são intensos, e a Gravitação Newtoniana também passa a ser vista como uma aproximação dessa teoria mais geral para a Gravidade.

    Mais adiante, surgiu a necessidade de se desenvolver uma Teoria Quântica em termos dos princípios da Relatividade, considerando escalas de energias maiores, e, a partir daí, desenvolve-se a Teoria Quântica de Campos - cujo ponta pé inicial foi dado pelo físico Paul Dirac quando, em 1928, propôs a equação que previu a existência da antimatéria, uma forma de matéria com carga elétrica e outras propriedades invertidas - um poderoso ferramental matemático capaz de descrever uma vasta gama de fenômenos envolvendo partículas elementares, descrevendo-as como excitações de campos que permeiam todo o espaço.

    Contudo, a Teoria Quântica de Campos não é capaz de fornecer uma descrição satisfatória da Força da Gravidade, logo, ela não consegue descrever fenômenos nas maiores escalas de energia do Universo, como os que ocorreram nos instantes iniciais logo após o “Big Bang”, evento que marca a origem do chamado “Universo Observável”. Existem algumas teorias candidatas, como a famosa Teoria das Cordas, mas ainda estamos muito aquém de testes experimentais para essas teorias, daí as interrogações na Figura 1.

    Aqui, vamos estar lidando basicamente com o canto inferior esquerdo da figura, ainda assim, é necessário entender que, atualmente, a Mecânica Quântica é uma área base dentro da Física, praticamente todas as linhas de pesquisa nas quais os físicos atuam hoje possuem relação com ela, de forma que não há sentido em se utilizar o termo “físico quântico”, por exemplo, sendo totalmente redundante. Talvez haja a exceção daqueles que trabalham diretamente com Gravitação e Teoria Geral da Relatividade, mas mesmo esses cientistas certamente terão uma sólida base em Mecânica Quântica.

    O texto a seguir é voltado para o público totalmente leigo, apresentando uma ou outra fórmula simples, bastando conhecer as quatro operações básicas para entendê-las. Ainda assim, caso matemática não seja o seu forte, isso não irá comprometer em nada a compreensão das ideias apresentadas de modo geral. Então vamos lá!

O Nascimento da Mecânica Quântica

    Os primeiros passos em direção às descobertas sobre a estranha natureza da matéria em suas escalas mais fundamentais foram dados já no final do Séc. XIX, quando Max Planck realizou seus estudos sobre a radiação de corpo negro, um conceito idealizado, de um objeto que absorve toda a energia irradiada sobre ele, emitindo apenas a radiação térmica (a mesma que Sol emite, aquecendo a Terra, e que sentimos ao se aproximar de uma fogueira). Naturalmente, não existe um objeto assim, todos os corpos refletem alguma parte da radiação que incide sobre ele em maior ou menos grau, contudo, Planck usou uma pequena cavidade em uma superfície aquecida, o que apresenta um comportamento muito próximo ao de um corpo negro.

    Os resultados obtidos por Planck eram bem diferentes daqueles previstos pela teoria clássica da interação da matéria com a radiação eletromagnética - e a radiação térmica é uma forma de radiação eletromagnética, assim como a luz visível - além disso, essa teoria clássica previa que o corpo aquecido emitiria radiação com uma intensidade infinita, o que já não fazia sentido algum! Esse fato era conhecido como “catástrofe do ultravioleta”, pois os resultados teóricos apontavam que a intensidade crescia com a frequência da radiação, e o corpo deveria emitir em todas as faixas de frequência possíveis, até o infinito, sendo que “ultravioleta” se refere a frequências superiores às da luz visível.


Figura 2: A diferença entre as previsões da Física Clássica e o real espectro da radiação de corpo negro (H. Moyses Nussenzveig, Vol 4, Editora Edgard Blucher)

    A Figura 2 mostra a diferença entre a previsão teórica e os resultados de Planck. O gráfico da intensidade em função da frequência , I(𝜈), é chamado “espectro”. Note que, ao invés de crescer indefinidamente com a frequência, como previsto pela Física Clássica, o espectro crescia até um certo valor de frequência 𝜈, e depois caía, tendendo a zero para frequências muito maiores. Assim, a intensidade, dada pela área abaixo da curva no gráfico, era finita (já se sabia que a intensidade era finita e proporcional à quarta potência da temperatura).

    Na tentativa de explicar este resultado, Planck formulou, em 1900, a hipótese de que a matéria ao invés de absorver e emitir radiação de forma contínua, o faria através de “pacotes” - os “quanta” (em latim, o plural de “quantum”) - daí o termo “quântico” - significando certas quantidades discretas de energia. É similar ao que nós seres humanos fazemos com nosso dinheiro, as transações comerciais são sempre realizadas em quantidades discretas de centavos, a menor quantidade monetária que podemos receber ou transferir para alguém.

    Na hipótese de Planck, a energia E dos quanta estava associada à frequência da radiação, crescendo na mesma proporção que ela. Para quem curte equações, aí está a relação proposta por ele para resolver o problema:

E = h𝜈

onde a constante de proporcionalidade h é conhecida como Constante de Planck, a quantidade fundamental da teoria quântica, e a semente de uma verdadeira revolução no pensamento científico.

    Sendo os quanta de maior frequência os mais energéticos, eles teriam uma menor probabilidade de serem emitidos, daí a curva de Planck tender a zero para frequências muito altas, evitando assim a catástrofe do ultravioleta. É similar ao que acontece com um gás, as partículas que formam o gás têm uma energia média que depende da temperatura (quanto maior a temperatura, maior essa energia média), a probabilidade de uma partícula ter uma energia de movimento muito distante da média é muito baixa. Assim, era possível calcular a Constante de Planck, que nada mais é do que a constante de proporcionalidade entre energia e frequência, a partir da curva de radiação de corpo negro obtida experimentalmente.

    Esta constante tem o valor de cerca de 6,6 x 10-34 Joules segundo - calculado a partir dos resultados experimentais - o que significa que o quantum correspondente à uma frequência de um Hertz (um ciclo por segundo) tem uma energia de 6,6 x 10-34 Joules (se escreve zero, vírgula, mais 33 zeros depois da vírgula e aí sim, 66...), extremamente pequena. Só para se ter uma ideia, um Joule é a energia do movimento de um objeto de 2kg deslocando-se a um metro por segundo.

    Esta hipótese causou estranheza ao seu próprio autor Max Planck, pois não fazia sentido para os cientistas da época que a interação da radiação com a matéria se desse através desses pequenos pacotes. Contudo, isso não impediu que um jovem e ousado físico, em 1905, desse mais um passo significativo em direção à esse misterioso mundo quântico. Albert Einstein - e não é a toa que 1905 ficou conhecido como “annus mirabilis”, o ano milagroso da Física, pois foi também o ano de publicação da Teoria da Relatividade - buscando uma explicação para o efeito fotoelétrico, no qual correntes elétricas eram geradas quando, sob certas condições, se insidia radiação eletromagnética sobre peças metálicas, propôs que as cargas elétricas - os elétrons - eram arrancados do metal quando atingidos pelos quanta de radiação.

    De acordo com Einstein, a energia mínima dos elétrons em função da frequência da radiação incidente seria a mesma dada pela fórmula de Planck, a menos de uma “função de trabalho”, ou seja, uma energia de valor W bem definido necessária para “arrancar” um elétron do metal. A relação por ele proposta foi

E = h𝜈 - W

onde E representa agora a energia do elétron arrancado.

    Após Einstein apresentar suas ideias, o habilidoso físico experimental Robert Millikan se propôs a testar a validade de sua equação. Cuidadoso, mostrou-se extremamente cético em relação ao fato de que a luz - ou a radiação eletromagnética de modo geral - pudesse se comportar como “corpúsculos” ou “partículas” carregando quantidades bem definidas de energia. Contudo, os resultados obtidos foram surpreendentes!

Posteriormente, Millikan relatou: “... contra todas as minhas expectativas, vi-me obrigado em 1915 a afirmar sua completa verificação experimental, embora nada tivesse de razoável, uma vez que parecia violar tudo o que conhecíamos sobre a interferência da luz”.

    Em 1921, Einstein foi laureado com o Prêmio Nobel de Física pelo seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico. Em 1926, Gilbert Lewis cunhou o termo “fóton” para se referir aos quanta de luz, a energia transportada por uma onda eletromagnética seria, portanto, proporcional ao número de fótons.

    Vários outros desenvolvimentos teóricos e experimentais no início do Séc. XX passaram a confirmar cada vez mais a estranha relação entre a luz e a matéria. Um dos mais relevantes foi o trabalho de Arthur Compton, realizado entre 1919 e 1923, sobre a interação de Raios X com um alvo de grafita. Os elétrons pareciam saltar do material como se estivessem sendo atingidos por partículas, fato este que ficou conhecido como “Efeito Compton”. Tal efeito implicava que, além de energia, os fótons também carregavam o que os físicos chamam de “quantidade de movimento”.

    A quantidade de movimento de um corpo material é o produto de sua massa pela sua velocidade (um caminhão a 60km/h, por exemplo, carrega muito mais movimento do que uma motocicleta na mesma velocidade). De acordo com os resultados de Compton, os fótons carregavam uma quantidade de movimento p inversamente proporcional ao seu comprimento de onda 𝜆, sendo

p = h/𝜆

com a Constante de Planck aparecendo novamente.

    Assim, não havia mais dúvidas de que a luz, até então muito bem descrita como uma onda, parecia se comportar como partícula sob certas circunstâncias. Contudo, a natureza estava prestes a se mostrar ainda mais estranha do que os físicos poderiam supor. Para entender como, temos que voltar nossa atenção para um dos conceitos mais fundamentais das ciências naturais: O átomo! E é isso que vamos fazer na próxima parte.



Referências

Grande parte das informações deste texto foram tiradas do livro: Curso de Física Básica H. Moyses Nussenzveig, Vol 4, Editora Edgard Blucher, excelente para que quiser estudar o tema pra valer.

Outra fonte interessante para quem quer ir mais fundo no assunto é o site feynmanlectures.caltech.edu.

Comentários

  1. Muito boa iniciativa, querido sobrinho.
    Acho que a divulgação científica é uma atividade tão nobre e importante quanto a própria pesquisa.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, professor, pela sua iniciativa de divulgação científica.
    O texto ficou muito bom e me lembrou um vídeo que vi uma vez sobre termodinâmica e o princípio da incerteza.
    A provocação era sobre o que aconteceria com o movimento de um átomo no zero absoluto.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Leandro. Esta é realmente uma questão bem interessante, e mostra mais uma vez como a Mecânica Quântica apresenta resultados surpreendentes!

      Excluir
  3. Muito obrigada por compartilhar um pouco do seu conhecimento professor, o post foi muito bem escrito e é de fácil entendimento, parabéns pelo excelente trabalho!

    ResponderExcluir
  4. Parabéns por democratizar um assunto tão complexo como mecânica quântica.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas